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SOLUÇÃO URBANA: Por que as cidades são o melhor remédio contra os males da superpopulação no planeta

Piscina do Marina Bay Sands, em Cingapura
A vertiginosa “piscina infinita” no resort Marina Bay Sands proporciona uma vista arrebatadora de Cingapura, um país que se desenvolveu construindo para o alto, e não em extensão
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No tempo de Jack, o Estripador, uma época difícil para Londres, também vivia na capital britânica um afável estenógrafo chamado Ebenezer Howard – e ele merece ser lembrado porque acabou tendo um impacto significativo e duradouro no modo como pensamos as cidades. Calvo, com bigode farto que lhe cobria a boca e óculos de armação metálica, Howard tinha o ar distraído de um sonhador. E não estava nada contente com seu trabalho, que era o de transcrever discursos parlamentares. Sua inquietação levou-o a investigar o espiritismo, aprender o esperanto, uma língua que acabara de ser criada, e inventar uma máquina de taquigrafia. Além disso, sonhava com imóveis. Em carta de 1885 à esposa, ele afirma que o melhor para a família deles seria uma casa com “um jardim muito agradável e talvez até uma quadra de tênis”. Após gerar quatro filhos ao longo de seis anos enquanto morava em uma apertada casa alugada, Howard concebeu um plano para despovoar Londres.
Na década de 1880, Londres, que passava por um surto de crescimento, estava repleta de gente bem mais desesperada que Howard. Jack, o Estripador, escolhia suas vítimas em cortiços nos quais as condições de vida eram medonhas. “Em um porão viviam pai, mãe, três filhos e quatro porcos! [...] Em outro local, havia uma viúva, seus três filhos e uma criança que morrera 13 dias antes”, escreveu Andrew Mearns, um reverendo empenhado em mudar essa situação. Tais cortiços eram conhecidos na época vitoriana como “viveiros”, ou colônias de reprodução de animais.
O planejamento urbano no século 20 teve como base essa percepção negativa, herdada do século anterior. E, curiosamente, ele começou com Ebenezer Howard. Em um livreto que publicou em 1898, o estenógrafo que passava o dia transcrevendo ideias alheias decidiu expor suas ideias de como deveria viver a humanidade – apresentando uma concepção tão atraente que, meio século depois, o americano Lewis Mumford, um importante crítico de arquitetura, afirmou que Howard havia “lançado os fundamentos de um novo ciclo da civilização urbana”.
Para Howard, era preciso interromper a onda de crescimento urbano, incentivando as pessoas a sair das metrópoles cancerosas e se mudar para novas e autônomas “cidades-jardins”. Os felizes moradores desfrutariam de uma “mescla jubilosa” do campo e da cidade. Viveriam em residências agradáveis em meio a jardins nesses pequenos núcleos urbanos, se deslocariam a pé até as fábricas instaladas em suas periferias e se alimentariam dos produtos cultivados em um cinturão verde mais externo – que impediria a nova cidade de se expandir pela área rural circundante. Se uma dessas cidadezinhas alcançasse o limite de seu cinturão verde – quando abrigaria 32 mil pessoas, pelos cálculos de Howard –, aí seria a hora de construir outra semelhante. Em 1907, dando as boas-vindas aos 500 esperantistas que se mudaram para Letchworth, a primeira dessas cidades-jardins, um entusiástico Howard anunciou (em esperanto) que tanto a nova língua como as novas cidades utópicas logo se espalhariam por todo o mundo.
Howard estava certo a respeito do desejo humano de viver em condições menos apinhadas, mas se equivocou quanto ao futuro das cidades: no fim, o que prevaleceu por todo o planeta foi mesmo a onda da urbanização. Nos países desenvolvidos e na América Latina, essa tendência chegou agora quase ao ápice: nessas regiões, mais de 70% das pessoas vivem em cidades. Em grande parte da Ásia e da África, ainda é intensa a migração das zonas rurais para as urbanas, um movimento reforçado pelo crescimento demográfico. A maioria da população urbana mora em cidades com menos de 1 milhão de habitantes, mas as megalópoles se tornaram cada vez maiores e mais comuns. No século 19, Londres era a única cidade no planeta com mais de 5 milhões de moradores; hoje existem 54 que já superaram esse marco, a maioria delas na Ásia.
De lá para cá ocorreu outra mudança: a urbanização agora é vista com bons olhos. A opinião dos especialistas mudou bastante nas últimas duas décadas. Embora favelas tão atrozes quanto os antigos cortiços de Londres sejam encontradas por toda parte, as cidades com alta densidade demográfica estão despontando como solução – a melhor maneira de tirar as pessoas da miséria sem arruinar o planeta.
No início de uma noite de março deste ano, o economista Edward Glaeser, da Universidade Harvard, fez uma palestra em Londres para divulgar as ideias de seu novo livro, Triumph of the City. Glaeser, que cresceu em Nova York e fala muito rápido, apresentou-se bem armado com exemplos e dados. “Não há nenhum país urbanizado pobre; e também não há nenhum país rural rico”, explicou. Uma nuvem com nomes de países, cada qual classificado pelo PIB e pela taxa de urbanização, surgiu na tela atrás dele.
Gandhi estava errado, afirmou Glaeser – o futuro da Índia não está em seus vilarejos, mas sim em Bangalore. Imagens de Dharavi, a maior favela de Mumbai, assim como de favelas no Rio de Janeiro, foram projetadas na tela. Para Glaeser, as favelas são exemplos do vigor das cidades, e não de seu colapso. Os mais pobres afluem para as áreas urbanas porque ali está o dinheiro, disse ele, e as cidades produzem mais riqueza porque “a proximidade das pessoas” reduz os gastos com transporte de bens, pessoas e ideias. Ao longo da história, as cidades surgiram à margem dos rios ou em portos naturais para facilitar a circulação de bens. Hoje, com a queda nos custos de transporte e a ascensão do setor de serviços, o que de fato importa é a circulação de ideias.
 
Para o economista, o maior exemplo de ambiente urbano vibrante é a Bolsa de Valores de Nova York, em Wall Street, sobretudo a ala dos negócios, na qual operadores milionários preferem trabalhar em ambientes abertos, que favorecem a troca de informações, do que ficar isolados em escritórios luxuosos. “Para eles, o conhecimento é mais valioso que o espaço. É isso o que caracteriza a urbe moderna”, diz. As cidades bem-sucedidas “aumentam a recompensa aos inteligentes”, ao permitir que as pessoas aprendam umas com as outras. Nas cidades em que a população é mais instruída, até os menos letrados ganham melhor. Isso, diz Glaeser, é indício de um “transbordamento de capital humano”
É fácil entender por que os economistas estão começando a ver as cidades, mesmo sendo problemáticas, como motores da prosperidade. Um pouco mais difícil é que o mesmo ocorra com os ambientalistas, ainda fascinados pelo exemplo de Henry David Thoreau, que exaltou a vida em uma cabana no meio do mato. Ao aumentar a renda de seus moradores, as cidades também contribuem para o aumento do consumo e da poluição. Para quem valoriza acima de tudo a natureza, as cidades mais parecem focos concentrados de danos – até que se considere a alternativa, ou seja, a disseminação desses danos. De uma perspectiva ecológica, comenta o escritor Stewart Brand, um defensor da urbanização, um movimento de retorno à terra seria catastrófico. (Certa vez, Thoreau, lembra-se Glaeser com certo contentamento, incendiou sem querer 120 hectares de floresta.) Graças às cidades, metade de todos os seres humanos ocupa cerca de 4% das terras cultiváveis, liberando mais espaço para a agricultura.
Os moradores urbanos têm ainda um impacto relativo mais reduzido, explica David Owen no livro Green Metropolis. Nas cidades, as vias pavimentadas, os esgotos e as linhas de transmissão elétrica são menos extensos e, portanto, demandam menos recursos. Prédios de apartamentos requerem menos energia para ser aquecidos e iluminados do que casas isoladas. Nas cidades, as pessoas usam menos os carros. Parte de seus deslocamentos pode ser feita a pé, e há uma quantidade de pessoas que frequentam os mesmos lugares suficiente para viabilizar transportes coletivos. Em Nova York, o consumo de energia e as emissões de dióxido de carbono per capita são bem mais baixos que a média nacional.
Nos países em desenvolvimento, as cidades apresentam uma densidade populacional ainda maior e usam bem menos recursos. Porém, isso se deve sobretudo ao fato de que os pobres não consomem muito. A favela de Dharavi talvez seja um “modelo de baixa emissão”, diz David Satterthwaite, do Instituto Internacional para o Ambiente e o Desenvolvimento, em Londres, mas seus moradores não contam com água limpa, esgoto ou coleta de lixo. E o mesmo ocorre com 1 bilhão de outros moradores urbanos nos países em desenvolvimento. São essas cidades, segundo projeções das Nações Unidas, que vão absorver a maior parte do crescimento demográfico mundial até 2050 – um acréscimo de mais de 2 bilhões de pessoas. O modo como os governos desses países vão enfrentar esse desafio tem consequências que serão sentidas por todos nós.
Muitas dessas nações estão reagindo de maneira semelhante à da Inglaterra diante do crescimento de Londres no século 19, ou seja, tentando interromper o processo. De acordo com um levantamento da ONU, 72% dos países em desenvolvimento adotaram políticas que visam bloquear a onda migratória para as cidades. No entanto, é um equívoco ver a urbanização em si como um mal, e não como um fator inevitável do desenvolvimento, afirma Satterthwaite, que presta consultoria a governos e associações de moradores de favelas ao redor do mundo. “O crescimento acelerado não me assusta”, diz ele.
Embora não exista modelo único para se controlar tal processo de urbanização acelerada, alguns exemplos são animadores. Um deles é o de Seul, a capital da Coreia do Sul. Entre 1960 e 2000, a população de Seul saltou de pouco menos de 3 milhões para 10 milhões de habitantes. No mesmo período, a Coreia do Sul deixou de ser um dos países mais pobres do mundo, com um PIB per capita inferior a 100 dólares, para se tornar mais rica que algumas nações europeias. Essa transformação acelerada não se deu sem sequelas. Quem chega de carro a Seul pela via expressa à beira do rio Han atravessa um oceano de prédios residenciais de concreto parecidos, cada qual identificado por um número imenso de modo a distingui-lo de seus clones. Poucos anos atrás, porém, muitos coreanos ainda viviam em barracos. “Vistos de fora, os prédios de apartamentos talvez pareçam deprimentes”, comenta a urbanista Yeong-Hee Jang, “mas, no interior deles, a vida das pessoas é calorosa e confortável.”
Toda cidade é uma mescla única de planejamento e não planejamento, de elementos concebidos por governos e de outros que surgiram de forma orgânica em função das escolhas dos moradores. Seul foi planejada desde o início. Em 1394, monges escolheram o local da cidade para o rei Taejo, o fundador da dinastia Choson, com base nos antigos princípios do feng shui. Eles situaram o palácio do soberano em um terreno auspicioso, diante do rio Han. Durante cinco séculos, a cidade permaneceu quase toda dentro dos limites assinalados por uma muralha de 16 quilômetros, erguida em apenas seis meses. Era uma cidade fortificada, elitista. Mas, no século 20, Seul foi obrigada a se transformar.
A Segunda Guerra Mundial e, em seguida, a Guerra da Coreia, que acabou em 1953, levaram mais de 1 milhão de refugiados à cidade devastada. Não restava muita coisa da velha Seul – e pela primeira vez ela foi ocupada por uma mistura explosiva de gente das mais diversas origens. No âmago delas, antigas virtudes do confucionismo, como lealdade e respeito pela hierarquia, mesclavam- se a valores ocidentais, como democracia e conforto material. Na mesma época teve início o surto demográfico na Coreia do Sul, desencadeado, como em outras partes do mundo, por avanços nas condições sanitárias e na alimentação.
 
Por mais incômodo que seja isso, o fato é que coube a um ditador organizar toda essa energia. Em 1961, após assumir o poder em um golpe militar, Park Chung-Hee direcionou empréstimos externos para incentivar empresas coreanas voltadas à exportação – no início, roupas e perucas baratas; depois, aço, equipamentos eletrônicos e automóveis. Nesse processo, que resultou na criação de imensos conglomerados, como a Samsung e a Hyundai, foram cruciais as mulheres e os homens que afluíam a Seul em busca de trabalho. “Não dá para entender a urbanização sem considerar o desenvolvimento econômico”, diz o economista Kyung-Hwan Kim, da Universidade Sogang. A cidade em crescimento tornou possível o surto econômico, e este, por sua vez, viabilizou a infraestrutura que permitiu à cidade absorver a população cada vez maior do país.
Muita coisa não sobreviveu ao frenesi de construção de arranha-céus. Quem vivia na antiga Seul, ao norte do rio Han, nas décadas de 1970 e 1980, acompanhou o surgimento de uma cidade nos arrozais que se estendiam pela margem sul, na área de Kangnam. E também viu as classes média e alta abandonarem as ruelas sinuosas e as casas tradicionais – as lindas hanok de madeira, com pátios internos e telhados curvos – e se mudarem para prédios antissépticos em um tabuleiro de avenidas mais propício ao tráfego de carros. “Seul perdeu seu encanto”, diz Choo Chin Woo, jornalista do semanárioSisaIN. Pior, os pobres acabaram deslocados à medida que seus bairros foram sendo tomados por edifícios nos quais não tinham condições financeiras de morar.
Com o tempo, porém, uma parcela crescente da população viu-se em condições de desfrutar do surto imobiliário. Metade dos moradores de Seul vive hoje em apartamentos próprios. Em Kangnam, todos os prédios estão alinhados feito soldados em uma parada. “É que as pessoas querem um apartamento voltado para o sul – tanto para receber o sol como por razões de feng shui”, explica a urbanista Yeong-Hee Jang.
Hoje Seul é uma das cidades de maior densidade demográfica no mundo. Circulam por suas ruas milhões de carros, mas o metrô é excelente. A vida melhorou à medida que o país passou de uma taxa de urbanização de 28% em 1961 à atual de 83%. A expectativa de vida aumentou de 51 para 79 anos. Os meninos coreanos agora crescem 15 centímetros a mais que antes.
A experiência da coreia do sul comprova que um país pobre pode se urbanizar com êxito em pouco tempo. Ainda assim, a nação asiática nunca se livrou da noção de que uma grande capital é um tumor que suga a energia do resto do país. O governo está agora construindo uma nova capital 120 quilômetros ao sul de Seul – a partir de 2012, metade dos ministérios vai ser transferida para lá. Outras instituições públicas serão dispersas pelo país para reduzir a disparidade econômica entre a capital e o interior. Os esforços para interromper o crescimento de Seul remontam à época do ditador Park Chung-Hee. Em 1971, quando a população da cidade ultrapassava 5 milhões de habitantes, Park buscou inspiração em Ebenezer Howard, criando em torno da capital um cinturão verde a fim de bloquear o avanço da mancha urbana, tal como foi feito em Londres em 1947.
Ambos os cinturões contribuíram para a preservação de áreas verdes, mas nenhum interrompeu o crescimento da cidade – agora as pessoas vivem em subúrbios mais distantes e se deslocam todo dia até o centro para trabalhar. Aparentemente, quando se tenta interromper o crescimento, o que ocorre é um alastramento ainda maior da mancha urbana. “Os cinturões fizeram com que as pessoas se mudassem para áreas, às vezes, muito distantes”, comenta o urbanista Peter Hall, de Londres. Brasília, uma capital planejada, foi concebida para ter 500 mil habitantes. Hoje, mais de 2 milhões de pessoas vivem fora do plano piloto e do cinturão verde que deveria impedir a expansão da cidade.
As dimensões dessas manchas tornaram-se tão preocupantes para os urbanistas quanto sua antítese, o adensamento demográfico, era um século atrás. Outras medidas governamentais, como incentivos à construção de estradas e à aquisição de residências, foram cruciais para a proliferação dos subúrbios. Assim como um outro fator importante no destino das cidades – as escolhas feitas pelo morador. Ebenezer Howard tinha razão a respeito de uma coisa: muita gente prefere morar em casa agradável com jardim.
O alastramento suburbano não é um fenômeno apenas ocidental. O professor Shlomo Angel, de Nova York, estudou mudanças em 120 cidades ao longo dos anos 1990. Mesmo nos países em desenvolvimento, a área urbana aumenta com maior rapidez que o afluxo de novos moradores; em média, as cidades ficam 2% menos densas a cada ano. O que impulsiona tal expansão? Renda e transporte barato. “Quando sobe a renda, as pessoas adquirem mais espaço”, diz Angel. Com meios de transporte acessíveis, elas podem percorrer distâncias maiores da casa ao trabalho.
 
Todavia, o tipo de moradia e o meio de transporte que elas adotam fazem diferença. No século 20, as cidades dos Estados Unidos foram reorganizadas em função dos carros – máquinas libertadoras, mas que tornaram irrespirável o ar e empurraram os subúrbios para além do horizonte. O alastramento suburbano possibilitado pelo automóvel é um devorador de terras de plantio, energia e outros recursos. Hoje, os urbanistas querem repovoar a região central das cidades e adensar os subúrbios, por exemplo, com a criação de áreas de circulação de pedestres onde antes havia estacionamentos de shopping centers. Enquanto isso, na China, na Índia e no Brasil, em que prossegue a migração para as cidades, as vendas de carros continuam aquecidas. “Seria melhor para o planeta”, escreve Edward Glaeser, se os habitantes desses países ficassem concentrados “em cidades densas, em vez de manchas urbanas amplas e dependentes do carro.”
Segundo Angel, nas regiões em desenvolvimento, a expansão urbana é inevitável. Porém, há uma posição intermediária entre a anarquia hoje existente em muitas dessas cidades e o impulso utópico inicial: um tipo de planejamento mais modesto e promissor. Ele requer a capacidade de se pensar décadas à frente, comenta Angel, preservando-se determinadas áreas, antes de ser urbanizadas, para a instalação de parques e de uma rede de corredores para os transportes coletivos. Todavia, isso só é viável quando se consideram as cidades de maneira positiva – não como doença, mas como concentração de energia humana a ser organizada e aproveitada.
A cidade-jardim inglesa de Letchworth hoje dá a impressão de ter sido esquecida pelo tempo. O ideal buscado por Ebenezer Howard, de que ali se constituísse uma comunidade autônoma, nunca se concretizou. Os sitiantes no cinturão verde de Letchworth vendem a beterraba e o trigo que cultivam para uma empresa de cereais matinais. Quase todos os moradores deixam a cidade todo dia para ir trabalhar em Londres ou em Cambridge. John Lewis, diretor da fundação criada por Howard e que é proprietária de quase todos os terrenos locais, acredita que Letchworth corre o risco de virar uma “cidade-dormitório”.
Mesmo assim, Letchworth tem algo que os urbanistas consideram indispensável à sustentabilidade: não foi projetada em função dos carros, que foram ignorados por Howard. De qualquer ponto pode-se caminhar até o centro para fazer compras ou tomar o trem para Londres. Na verdade, Letchworth parece um ótimo lugar para se viver; o problema é que não serve para todos. Como, na verdade, nenhum outro lugar.
Situada 55 quilômetros ao sul de Letchworth, Londres continua sendo insuperável. Hoje vivem ali 8 milhões de pessoas. Fracassaram todas as tentativas de se impor alguma ordem ao labirinto de suas ruas, como pode constatar qualquer pessoa que ande de táxi pela cidade. Mas duas coisas sensatas foram feitas ali quando ela se expandiu nos séculos 19 e 20. A primeira foi a preservação de parques enormes e semisselvagens. A segunda, e mais importante, foi que a cidade se expandiu ao longo das linhas de trem e de metrô. “Basta acertar o sistema de transporte”, diz Peter Hall. “E deixar que as coisas aconteçam.”
Em seguida, ele some em uma estação de metrô a caminho de casa, deixando-me na calçada com um presente inestimável: horas para perambular por Londres. Até mesmo Ebenezer Howard teria entendido esse sentimento. Ao voltar à Inglaterra após alguns anos nos Estados Unidos – nos quais tentara em vão se estabelecer como fazendeiro no Nebrasca –, ele ficou emocionado ao rever sua cidade natal. Um simples passeio de ônibus era, para ele, um prazer visceral. “Nessas ocasiões, eu era tomado por um sentimento de enlevo... As ruas repletas de gente – os sinais de riqueza e prosperidade –, mesmo a confusão e a desordem pareciam atraentes e me enchiam de alegria.”

Sol, mar e uma garrafa de rum

No problem, man! Em Cancún, em Cuba e na Jamaica, três dos mais queridos destinos caribenhos para os brasileiros, a gente só quer é ser feliz

 

CANCÚN

Uma ilha em forma de 7

Quando a principal dúvida do dia se restringe a ter de escolher entre uma Ocean View e uma Premium Ocean, pare tudo. Talvez a sua vida esteja passando por um de seus grandes momentos. Eu guardo bem esse instante, tanto que me lembro do nome do maleteiro que nos explicava as vantagens de uma e de outra suítes e de como os US$ 60 de upgrade naquela baixa temporada não eram nada. Absolutamente nada. Darío, era assim que ele se chamava, discorria sobre as vantagens dos quartos, que ficavam lado a lado no sexto andar do hotel de seis andares.

A Ocean View, como o nome indicava, tinha vista de frente para o oceano – e não de lado, como a nossa primeira opção, uma Garden View (que, portanto, tinha vista para o garden). Darío prosseguia. A suíte vizinha, a Premium Ocean, custaria um pouco mais. Mas não muito. Mais ampla que a anterior, ela tinha, além do quarto com cama king-size e aquela mesma vista, uma antessala e duas televisões de 32 polegadas. Televisões que você não iria ver, a não ser quando apagassem lá fora o dia e o mar hipnotizantes em suas dezenas de camadas de cor azul. Ficamos com a primeira. Já estava de bom tamanho.

Nossa passagem por Cancún concluiu uma longa viagem pelo México, com outras seis cidades e muitos meios de transporte pelo caminho. Chegávamos um pouco cansados. De troca de hotel, de mudanças de temperatura, de repetições e variações de cardápio. Chegar a Cancún foi como encontrar um lugar perfeito para... Bom, deixa primeiro eu contar como é chegar a Cancún. Vínhamos de carro pela 307, a carretera federal que acompanha a Riviera Maia de Tulum até Cancún, ou vice-versa, a depender de como se olhe o mapa. Essa chegada, vale dizer, é a mesma para quem vem de avião e segue em carro alugado ou transfer. Portanto, não se preocupe: veremos as mesmas coisas. Depois do trevo do aeroporto, você vai seguindo as placas: “Zona Hotelera”. Não tem erro nem alternativa. Você passa uma ponte sobre o Canal Nizuc, e começa o deslumbre. A avenida, a Boulevard Kukulcán, é um tapete feito de asfalto com um canteiro de palmeiras, muitas palmeiras, no meio. Você desliza.

Do lado esquerdo, vamos vendo postos de abastecimento, clubes, restaurantes. Tudo com vista para uma lagoa de água azul-esverdeada. Do direito, uma sequência de resorts gigantescos – um deles em forma de pirâmide. Você ainda não enxergará o mar, mas imensos gramados verdes, aparados impecavelmente. Sentirá talvez esse cheiro, o de grama cortada. Sentirá possivelmente o aroma e o frescor de uma brisa salgada. Logo, logo você encontrará o seu lugar, o seu resort. E, quando chegar ao seu quarto, vai começar a entender como funciona a coisa toda, assistindo do alto, como num Google Earth particular.

Adeus, Wilma

A Kukulcán é a principal artéria da Zona Hotelera, o outro nome da Isla Cancún, um pedaço de terra cercado de água doce e salgada por quase todos os lados. Essa ilha tem 23 quilômetros de comprimento e a curiosa forma de um “7”. É separada do continente pela Lagoa Nichupté e ligada a ele por duas pontes. Tudo parece tão meticulosamente calculado que a ilha logo passa a sensação de ter sido construída por alguém. E foi mesmo, pelo governo mexicano, que nos anos 1970 transformou um vilarejo de pescadores em um grande complexo turístico. Hoje é um dos balneários mais importantes do mundo.

No Prêmio VT, em que os leitores desta revista elegem os melhores destinos nacionais e internacionais, Cancún reina como o melhor destino de praia do exterior desde que a categoria foi criada, em 2004. Ou seja, foi campeã oito vezes. Essa lembrança se reflete nos números de visitação. Em 2007, 10 mil brasileiros aterrissaram em Cancún. No ano passado, foram 53 mil (entre janeiro e outubro), segundo o Escritório de Turismo de lá. O sucesso atual encerra uma história recente difícil com dois capítulos marcantes. Em 2006, a passagem do furacão Wilma, um dos mais devastadores que já varreram a costa do Atlântico. Em 2009, a epidemia de gripe A – o México foi um dos sete países considerados de risco. Para um balneário que costuma receber 3 milhões de turistas por ano (metade deles americanos), ambos foram golpes duríssimos. Com a gripe, a taxa de ocupação dos hotéis caiu para 5%. Com o furacão a história foi mais grave: destruiu os megarresorts, desapareceu com a areia de praia.

Lembrávamo-nos de Wilma enquanto tomávamos um esplêndido café da manhã no La Capilla Argentina, uma autêntica parrilla que das 8 horas ao meio-dia se transforma num bufê chique variado: US$ 20 o café completo, com direito a todos os pratos quentes (incluindo fajitas, tortillas, tacos e nachos), além de sushis e sashimis, waffles e panquecas, ou US$ 15 o simples, só com suco, futas e cereais. Um dia antes preferimos atravessar os jardins do hotel e tomar um cappuccino com muffin na Seven Eleven colada a um posto de gasolina, de pé e rindo, por US$ 2 os dois.

Quem nos servia no La Capilla era Lázaro, um simpático garçom nascido em Chiapas, o estado mais pobre do México, que trabalhava em Cancún havia mais de 15 anos. Olhando para fora, Lázaro nos contou que, passados o aguaceiro e a ventania, todas aquelas espreguiçadeiras ficaram amontoadas, dentro e fora da piscina, como se fossem de papel amassado. As vidraças imensas foram estilhaçadas. As palmeiras, derrubadas. A praia sumiu. “O pior foi quando tudo passou e vimos o estado das coisas.” Sol lá fora, pessoas felizes de roupão e margarita na mão, o relato agora parecia surreal.

Para chegar rápido ao final feliz: dois anos e US$ 1,5 bilhão depois, Cancún estava reconstruída. Uma empresa belga responsável pela criação das ilhas artificiais de Dubai trouxe a areia de volta, tirando-a do fundo do mar. As praias, de Punta Cancún a Punta Nizuc, ficaram até mais largas. Depois do Wilma, ainda houve outros sustos; nenhum tão devastador. Nem sempre os meses mais propícios à formação de furacões, setembro e outubro, têm episódios semelhantes. Como uma compensação divina, no restante do ano o clima é generoso. A média é de 286 dias de sol.

Simples assim

A grande alegria em Cancún talvez seja a simplicidade das coisas. Não falo do rústico nem do barato, pois nenhuma dessas características se encaixa bem aqui. Digo do simples. Quão simples é deitar-se numa espreguiçadeira em frente à praia com um copo de margarita na mão e ficar olhando o mar até se cansar, e então mergulhar na imensidão daquele azul ou dar um cochilo e, quando a vontade de ficar lá passar, voltar às piscinas do hotel, não sem antes tirar a areia do corpo em um chuveirão com diâmetro maior do que a nossa própria circunferência, para então escolher uma das piscinas e ficar ali até ter vontade de alguma outra coisa? Simples.Como se tudo em Cancún tivesse sido pensado para o seu, o meu, o nosso conforto. E foi. E funciona.

No miniguia encartado nesta edição você encontra todas as outras atividades imperdíveis. Os passeios mais comuns. Os restaurantes mais bacanas. As compras que nos dão a sensação de estar fazendo verdadeiros bons negócios. Nós aproveitamos várias dessas coisas. Nos perdemos no La Isla Shopping Mall depois de uma porção gigante de nachos com cheddar no Blu, na praça de alimentação voltada para a Laguna Nichupté. Ela ficava ao lado, aliás, de uma Hooters, rede americana em que garotas de shortinho e meia-calça bege rodam bambolê para garotões embevecidos. Tomamos um drinque colorido no Hard Rock Café; ganhei uma inevitável camiseta.

Em outro dia, escapamos até Puerto Juárez, o lado B de Cancún, a antiga vila de pescadores onde tudo começou. Ali tivemos a chance de ver como vivem os locais. A praia que frequentam quando não trabalham. Os bares de sucesso (com mesas nanicas, cervejas geladas, tequilas que vão baixando de preço à medida que você vai ficando amigo do garçom, Célia Cruz cantando que a vida é um carnaval nos alto-falantes).

Na última manhã, quisemos ver o que havia passando Puerto Juárez. Já não encontramos cartazes de empreendimentos imobiliários. Nem pessoas. Nem outros carros. Já não aparecíamos nos mapas. Até que, depois de 15 quilômetros de nada, a imagem de uma caveira com tapa-olhos nos fez sair da estrada. Cabanas, um bar, um balanço, uns quiosques. Tudo abandonado. O píer, apodrecido, servia de apoio a pelicanos. A areia estava cheia de algas, como se ninguém tivesse pisado ali por séculos. Isla Blanca. Nos sentimos fora do tempo. Entramos naquele mar. Talvez a vida estivesse passando por outro de seus grandes momentos.(GABRIELA AGUERRE)

 

Carros em Havana, Cuba

CUBA

Entre mojitos e lagostas

A motivação não era ideológica, admito. Eu só queria um lugar para passar o Réveillon que não fossem, de novo, as praias superpopulosas do Litoral Norte paulista e de Santa Catarina. A opção por Cuba teve muito mais a ver com azul-Caribe do que com princípios igualitários, Baía dos Porcos e o imaginário revolucionário. No meu pacote de uma semana, estavam, meio a meio, Havana e a ilhota de Cayo Largo, ao sul da Ilha de Cuba. Eu já imaginava o que esperava por mim em Havana, e desembarcar naquele cenário parado no tempo, portanto, não chocou. Senti-me como se andasse no Centro do Rio, ou da minha Santos, num dia de feriado. Não havia trânsito nem movimento, e o lindo casario ruía a olhos vistos. Logo no hotel, o Tryp Habana Libre (Calle 23 L, www.solmelia.com; diárias desde US$ 130), o país começou a mostrar suas peculiaridades.

Apesar de o Tryp ser de uma grande rede espanhola, o check-in foi próprio de um lugar dominado pela burocracia, onde o cliente jamais tem razão. O negócio demorou uma data, sem contar a má vontade da funcionária. Uma alternativa mais original é ficar no histórico Saratoga (www.hotel-saratoga.com; diárias desde US$ 360), num prédio belíssimo bem ao lado do Capitólio.

Se as construções de Havana não veem reformas desde os anos pré-revolucionários, é verdade que eles criam um ambiente delicioso, seguro e cheio de turistas. Vi e ouvi canadenses, espanhóis, alemães, italianos – todos fotografando aquele museu a céu aberto. Cuba deve ter também os melhores mecânicos do mundo, pois fazem rodar aqueles carrões americanos dos anos 1950 e os utilitários soviéticos Volga e Lada, que ajudam a compor um espetáculo e tanto em suas ruas. Para a primeira noite havíamos contratado, por livre e espontânea pressão de um guia, um show de uma das formações do Buena Vista Social Club no Café Taberna (Calle Mercaderes, 53, 53-7/861-1637). Não faltaram temas como Guantanamera e Chan Chan. Os “meninos” setentões mostraram a competência e a qualidade musical que se espera de uma banda cubana, e mais: interagiram com os turistas e não se furtaram às fotos. Comecei naquele bar minha caça ao melhor mojito de Havana, a caipirinha local.

Acordar cedo não é comigo, ainda mais de ressaca, mas o nosso guia, Alejandro Morales, não deu desconto no dia seguinte e apareceu na recepção do Tryp para nosso emocionante city tour. Analista de sistemas e filho de diplomata, ele, como tantos em seu país, sobrevive em outras funções. Como guia, consegue gorjetas que, como disse, “podem significar um mês de salário”.

Cuba tem médicos, professores, cientistas e outros profissionais de ponta que ganham muito mal e precisam encontrar formas alternativas de sobrevivência. E é nesse ambiente de estagnação que Alejandro enxerga o futuro. “Acho que vêm mudanças por aí. Raúl tem uma mentalidade mais jovem”, diz. O Raúl em questão é Raúl Castro, que, com seus 80 anos, não parece ser o dirigente que irá colocar o país no caminho da modernidade. Mas, se ele não reverter uma decisão de 1998, quando da visita do papa João Paulo II, já estará jogando a favor. Nessa época, pelo simples fato de não haver onde comer fora em Cuba, foi permitido às pessoas comuns montar os paladares, espécie de restaurantes informais, em suas casas. Hoje os moradores também podem alugar quartos para estrangeiros (consulte www.ohavanacasaparticular.com caso tenha interesse).

Meu début no mundo dos paladares foi no La Moneda Cubana (Calle Empredado, 152, 53/7-861-5304, www.lamonedacubana.com), aberto há um ano numa casa dos anos 1920 por Miguel Menéndez, outro dos milhares ou milhões de cubanos que adoram os brasileiros e acompanham diariamente Tony Ramos e Mariana Ximenes na novela Passione, ora em exibição no país. O couvert tinha pão com manteiga, servida em formato de flor. Depois a coisa ficou mais séria: lagosta, camarão e peixe com arroz branco. E ainda piña colada, cerveja e mojito, claro, tudo por cerca de US$ 25. Outra indicação é o Paladar San Cristóbal (Calle San Rafael, 469, 53-7/860-1705), com sua ótima lagosta. Faça reserva.

Entre a lagosta e o próximo mojito, você vai ser assediado ao andar pelas ruas. Cubanos pedem, gentilmente, dinheiro, sabonete, uma peça de roupa que você estiver utilizando. Para o meu guia e agora já consultor de assuntos internos Alejandro, “pura malandragem”. “Ou são estrangeiros que vieram para algum tratamento médico ou sujeitos que não querem trabalhar. Emprego tem.” A dependência de rum começava a bater. Hora de ir à famosa Floridita, o bar onde o escritor americano Ernest Hemingway fazia barba e cabelo e onde o daiquiri, bebida prima-irmã do mojito que ele adorava, sai por US$ 6. Há ali também apresentação de salsa.

Alejandro veio depois com suas questões de ordem para nos tirar dali. O argumentoera bom: íamos à La Bodeguita del Medio, o lugar onde o mojito foi criado. O bar é daqueles dos quais não dá vontade de ir embora, apesar do aperto e das paredes pichadas. Ande sempre com dinheiro, pois mesmo os locais que dizem aceitar cartões de crédito no final alegam “problemas técnicos” para embolsar as verdinhas. Ficamos até a grana acabar e as pernas cambalearem. Na outra noite, pegamos mais leve e fomos ao restaurante La Torre (Calle 17, 55, piso 36, 53-7/832-5650), no bairro de Vedado, mais formal e romântico. Eles servem ali ótimas lulas fritas e um bom cordeiro com arroz e batata frita como prato principal. A vista é a mais bonita de Havana.

Cayo Largo

Cayo Largo, uma ilhota ao sul da Ilha de Cuba, está a apenas 25 minutos de voo de Havana, mas tudo pode ser mais lento se você tiver de voar com uma companhia aérea cubana – no meu caso, a Aerogaviota. A operadora que eu e meu grupo de amigos contratamos era especializada em Cuba e também em separar casais nos voos. Cada embarque era um tormento na hora de pedir aos comissários para mudarmos de lugar.

Na ilhota, nós nos hospedamos no Sol Cayo Largo (Cayo Largo del Aur, 53-45/24-8260, www.solmelia.com; diárias desde US$ 190), também da rede Meliá, em Playa Blanca, onde estão os outros resorts. Se o que você busca em Cuba é uma praia caribenha, hecho; mas exigir um resort de serviço dominicano, pernambucano que seja, melhor tentar em outro lugar. O Sol, talvez por ser pé na areia, tem areia até no quarto. Os funcionários parecem não folgar nunca – servem o café da manhã e tocam o ganzá nos shows noturnos. O esquema era all-inclusive, mas a comida era pouco generosa – talvez para entrarmos no clima nacional, no qual as severas restrições de abastecimento fazem parte do cotidiano.

Cayo Largo, com suas areias branquíssimas e seu mar azul que dá vontade de gritar, é a quintessência do Caribe. Para ir às praias Sirena e Paradiso, é possível alugar scooters (US$ 25 por dia). A estrada lembra a BR de Noronha, mais mal sinalizada. Paradiso tem um bar com uma atração bastante Miami para o gosto revolucionário: um banho de 20 minutos com dois golfinhos amestrados (US$ 90). No cardápio, mais lagosta (a melhor de toda a viagem, a US$ 11). Turistas europeus como vieram ao mundo faziam parte da paisagem. Vale muito a pena contratar o passeio de catamarã (consulte em seu hotel). A primeira parada é na Cayo Iguanas, cheia desses bichos. Depois há snorkeling num ponto cheio de peixes e visita a mais praias daquelas da tela de descanso do seu computador. O almoço é servido a bordo (eu mencionei lagosta?).

Se você acompanhou com atenção as primeiras linhas deste relato, deve se lembrar de que eu estava em Cuba para o Réveillon. E ele foi no Sol Meliá, com direito a máscaras de Carnaval e um céu estrelado que iluminou o caminho desde a praia até o resort após pularmos as sete ondas. Como havia mais brasileiros por ali e um deles trazia um rádio-CD portátil, demos boas-vindas a 2012 ao som de Tim Maia e Ben Jor. Creio ter visto umas garrafas de Carta Oro na areia.(SIMONE TOBIAS)

 

Rick's Cafe, em Negril, Jamaica

JAMAICA

Sunshine days

“No problem, man.” A fase surgiu do nada, ou melhor, de um senhor jamaicano, à saída do aeroporto de Montego Bay, ao me ver confusa, sem saber em qual dos muitos ônibus ali estacionados subir. Meu sorriso deve ter saído particularmente amarelo com aquele calor e aquela umidade, mas isso não o inibiu de tocar meu braço, escancarar o sorriso e pontificar: “No problem, man. You are in Jamaica. Relax”.

Antes que você pergunte, “man”, em jamaiquês, vale para qualquer interlocutor, man ou woman. E “no problem”, bem, aquela foi apenas a primeira das centenas de vezes que ouvi a expressão no país. É um “idioma” que tem poucas fases, talvez três – as outras são “ya, man” e “respect”. Já fui três vezes à Jamaica e aprendi que não é nem um pouco difícil fazer o que o velho do aeroporto me aconselhou. Mas eu demorei a entrar no clima.

É que da primeira vez eu esperava encontrar um lugar similar ao Brasil, ainda que fosse pela cultura de praia ou pela musicalidade. Afinal, pode existir lugar mais autêntico para ouvir Bob Marley do que numa praia jamaicana? Mas, se One Love, Three Little Birds e Buffalo Soldier tocam o tempo todo nos hotéis, lojas e bares, ouvir reggae ao vivo em locais que não sejam pega-turista não é assim tão fácil. Nas praias, o que a gente vê são gringos – e jamaicanos ralando. O turismo, junto com o café, é uma fonte econômica relevante para o país. A taxa de desemprego ronda os 30%, mas mesmo assim o jamaicano vive numa “irie nation”, como dizem (“irie” é uma expressão local que significa algo como “feliz”).

Os jamaicanos têm um ponto quando dizem que seu país é a grande atração do Caribe. Não pelo tamanho – 11 mil quilômetros quadrados, uma fração da República Dominicana, por exemplo. Mas são pouco mais de 1 000 quilômetros de litoral, uma enorme quantidade de resorts all-inclusive e algumas cidades como Ocho Rios, Negril e Montego Bay, verdadeiros playgrounds para os caçadores dos sunshine days e das wild nights. E até para quem busca uma experiência mais antropológica a Jamaica tem algo a oferecer, já que o país possui claro protagonismo na cultura negra americana, como porto importante de desembarque de escravos que foi. Pena que sua capital, Kingston, com 600 mil habitantes (cerca de 20% da população), seja um lugar violento, conflagrado – o melhor é evitar. A Jamaica tem 42% de retorno de turistas, o maior do Caribe – e os americanos são os grandes responsáveis por isso.

Uma boa porta de entrada é Montego Bay, destino de grande parte dos pacotes e acessível via Estados Unidos e Panamá. MoBay é a grande balada da Jamaica. A orla está toda tomada por gigantescos resorts, e o restante da cidade se divide em feiras de artesanato, shoppings, restaurantes e bares com muita música – prepare-se para ouvir reggaeton 29 horas por dia. O babado é forte a ponto de fazer as festas da “spring break” (a semana do saco cheio) de Cancún parecerem encontro de religiosos – estou exagerando um pouquinho. Evite a tentação de alugar um carro. As estradas são ruins, a mão é inglesa, e o assédio de pedintes é enorme – você também não está livre deles se caminhar, a propósito. Por isso, é bem mais cômodo se juntar aos tours oferecidos nos hotéis.

Ocho Rios, a menos de 100 quilômetros de Montego Bay, é outro must go da ilha. A cidade está virando uma capital do turismo verde. Ali não param de surgir centros turísticos para a prática de esportes radicais ou nem tanto. É até possível descer de bobsled, aquela espécie de trenó no gelo (lembra do filme Jamaica Abaixo de Zero?), adaptado para o bosque tropical da Mystic Mountain (Ocho Rios Road, 1-876/974-3990, www.rainforestadventure.com; 9h/17h; US$ 68); nadar com golfinhos na Dolphin Cove (1-876/974-5335, www.dolphincovejamaica.com; 8h30/16h; desde US$ 129) e escalar as quedas-d’água que chegam ao Atlântico no Dunn’s River Falls (Dunn's River Falls Park, 1-876/974-2857, www.dunnsriverfallsja.com; 8h30/16h; US$ 20). Casais, famílias e amigos vão sempre de mãos dadas – um cartão-postal da Jamaica. No ano passado estreou o Fallmouth Port, porto construído em parceria com a Royal Caribbean para permitir ali a atracação dos maiores navios do mundo (como o Oasis of the Seas e o Allure of the Seas).

A 30 quilômetros, GoldenEye é outra atração. O lugar ficou famoso nos anos 1960, quando o autor Ian Fleming foi morar lá e escreveu todos os livros de um personagem bastante famoso: James Bond. A casa onde viveu Fleming pode ser alugada, mas há por ali também um dos resorts do produtor musical Chris Blackwell, célebre por comandar o selo independente mais famoso do mundo, o Island, onde estiveram de U2 a Grace Jones. Seu GoldenEye (www.goldeneye.com; diárias desde US$ 560) é hoje a hospedagem high end do país. Com suítes sobre uma lagoa privativa e propriedades em forma de villa (de um a três quartos cada uma, com mimos como banheira e ducha outdoor e piscina privativa) e rodeadas por jardins tropicais bem em gente ao mar, é o preferido de celebridades como Michael Caine, Kate Moss e Johnny Depp – que, por sinal, plantaram árvores de reflorestamento na propriedade em suas visitas. Refeições com toques orgânicos acontecem no Eden Dining, num deque com vista para uma lagoa, ou no Blue Bar, com vista para o mar.

Em um país cheio de praias do grande Caribe, é difícil montar um ranking das mais bonitas. Mas Negril, no oeste da ilha, é para muitos a hors-concours. Foi eleita a quarta mais bonita do mundo pelos usuários do site Trip Advisor, e para mim é a mais-mais da Jamaica. A imagem caribenha de cartão-postal: areia muito branquinha, água transparente (e morna), faixa larga de praia, peixinhos em abundância. É o cenário perfeito para uma outra atividade comum entre os turistas, o casamento. Os hotéis têm de cerimônias mais íntimas, pé na areia, até festanças completas para noivos, famílias e convidados. Não faltam ambientação, fotógrafos, pétalas de rosa na areia, bolos gigantes, juízes, religiosos etc. A rede Sandals (www.sandals.com) é uma das mais ativas nesse negócio.

Seja qual for a razão para ir a Negril, vá ao Rick’s Cafe (West End Road, 876/957-0380, www.rickscafejamaica.com), que funciona desde os anos 1970, quando Negril era uma mera vila de pescadores. Construído no alto de um penhasco, fica lotado todos os fins de tarde com turistas esperando o alaranjadíssimo pôr do sol com uma cerveja Red Stripe na mão. Gente menos contemplativa e os garotos locais preferem se jogar da ponta do penhasco direto no mar azul-turquesa, 12 metros abaixo. Quando a noite cai, o ambiente mais familiar dá lugar à típica noite jamaicana, com música ao vivo e eletrônica.

Aos poucos os turistas estão descobrindo outros dois lugares, Port Antonio e Whitehouse. A última virou queridinha da hotelaria de luxo desde que o hotel Sandals Whitehouse se instalou ali. Já Port Antonio vem ficando famosa pelo birdwatching e pelo “community tourism”, no qual os turistas que querem fugir do modelo resortão se hospedam em hotéis pequeninos e pousadas low-profile. A estrada que leva de Kingston a Port Antonio, chamada no país de “caminho pelas montanhas”, está sendo reformada.

Se você se surpreendeu com a ausência da ganja (o nome local da maconha) e de sexo neste relato, saiba que, apesar da tradição no uso da maconha e da fortíssima presença dela no imaginário reggae, o consumo é proibido no país – e particularmente coibido entre os turistas. Quanto ao sexo, sim, a Jamaica tem seus famosos resorts Hedonism, onde a nudez é mandatória em várias áreas dos hotéis e cenas de conteúdo “adulto” acontecem à sua frente (ou com você). Mas existe uma discrepância entre o número de (muitos) homens e de mulheres que se hospedam nos resorts – a ponto de a terceira mulher de um grupo não pagar. E, para não dizer que eu não falei de Jah, se você quiser homenagear seu maior propagador, Bob Marley, dê uma passadinha no Museu Bob Marley (56 Hope Road, 876/927-9152, www.bobmarleyfoundation.com; 2ª/sáb 9h30/16h; US$ 20), em Kingston, na casa onde o ídolo viveu. Ali, fãs se emocionam com a cama deixada desarrumada, a velha guitarra e um filme sobre seus últimos dias.(MARI CAMPOS)

 

Negril, Jamaica

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